1
Não sei como se adivinham
tempestades. No fim de uma estação
as borboletas morrem e o vento quebra
em varandas altas. É por trás dos vidros
que nos defendemos contra todas as surpresas.
Morremos de antemão. E já sob trovoada
assombra-nos o voo dos pássaros à chuva.
2
Todos sabemos acender um fósforo
a quem nos pede lume.
Talvez fosse uma conversa
possível até ao fim. Mas o mais vulgar
é ficarmos onde estamos
com o fósforo aceso à beira do rosto
– e antes de haver tempo
a chama queima os dedos.
3
Pequenos negócios, olhares lançados
sem dilatação. Dedos a tocar
mármores tão frios. Sombras sem memória
de mesas de cafés. Tudo apagamentos
– como um jornal esquece
mais um dia.
4
Num dia assim contemplar as nuvens
ou enfrentar a morte: é isto que dizemos
enquanto prometemos o dia da coragem.
Mas o mais temível são as coisas simples:
prazos terminados inúteis providências
afectos que se pegam
como nos invernos as constipações.
5
Desencanto a voz. Uma atenção miúda
faz daquele arbusto um feixe de absurdos.
Narinas deste cão centrando um mundo
e duas abelhas ali ao mesmo tempo:
é isto que agora só interessa – atravessar
o jardim pelo meio da cidade
muito calado para entrar em casa.
6
A chuva alterou toda a paisagem.
Novos charcos e folhas mais brilhantes
um halo que custa a desvelar.
São guarda-chuvas o que os homens abrem
cafés despenteados por rumor de gabardinas.
Mesmo com sapatos sou um cão à chuva
e tenho os pés molhados como queria.
7
O mal vem aos rostos e mata o coração.
Tivemos de aprender a dor civicamente:
o olhar ferido por inexpressões
o assobio das faces carcereiras
essa armação da voz, as predações
– e sempre tudo dentro
de espelhos verdadeiros, salões de festas, lustres…
8
Pedi uma carteira. Queria fazer lume
deitar fumo da garganta e ficar só.
Breves palavras de tabacaria. E mesmo aí
fiquei a dever por falta de troco.
9
Podia marcar as incursões do sol
por esta sala. Alimentar uma esperança
solar. Mas as estações são indomáveis
e uma casa é um jogo de janelas
que se fecham. Mosca inerte nas vidraças
laranja que apodrece sobre a mesa:
eis os pequenos seres na ratoeira.
Carlos Poças Falcão
-tenho imensas saudades tuas, Carlos!
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